A lavadeira começou a viver como uma serviçal que impõe respeito e não mais como escrava. Mas essa regalia súbita foi efêmera. Meus irmãos, nos frequentes deslizes que adulteravam este novo relacionamento, eram dardejados pelo olhar severo de Emilie; eles nunca suportaram de bom grado que uma Índia passasse a comer na mesa da sala, usando os mesmos talheres e pratos, e comprimindo com os lábios o mesmo cristal dos copos e a mesma porcelana das xícaras de café. Uma espécie de asco e repulsa tingia-lhes o rosto, já não comiam com a mesma saciedade e recusavam-se a elogiar os pastéis de picadinho de carneiro, os folheados de nata e tâmara, e O arroz com amêndoas, dourado, exalando um cheiro de cebola tostada. Aquela mulher, sentada e muda, com o rosto rastreado de rugas, era capaz de tirar o sabor e o odor dos alimentos e de suprimir a voz e o gesto como se o seu silêncio ou a sua presença que era só silêncio impedisse o outro de viver.
Ao apresentar uma situação de tensão em família, o narrador destila, nesse fragmento, uma percepção das relações humanas e sociais demarcada pelo
- predomínio dos estigmas de classe e de raça sobre a intimidade da convivência.
- discurso da manutenção de uma ética doméstica contra a Subversão dos valores
- desejo de superação do passado de escassez em prol do presente de abastança.
- sentimento de insubordinação à autoridade representada pela matriarca da família.
- rancor com a ingratidão e a hipocrisia geradas pelas mudanças nas regras da casa.
Letra A